Começo a rabiscar. Sim, rabiscar, pensei nessa palavra o dia inteiro.
Escrever talvez seja pretensioso demais: já pressupõe que o que sai dos
dedos vá ser bom ou fazer sentido. Rabiscar é um pulo, é um tiro, é um
risco. Vários riscos. Então, rabisco. Falo um pouco de mim, quem sabe.
Faz tanto tempo que não rabisco assim, sincero, de coração. Dia desses,
uma amiga alegou sentir falta – disse que meus textos a faziam sentir
saudade de coisas que não viveu. E, às vezes, escrevê-los me fazia
sentir assim. Era um ato de honestidade da mais pura ordem, um ato de
libertação. Passei depois a me esquivar de como sentia, a fazer pose. O
texto era uma construção de uma faceta do que queria mostrar, até para
mim mesmo. Algo planejado, arquitetado, como as janelas de um prédio.
Não era rabisco, era escrita travada. Como redação em colégio. E eu, na
minha pequenitude, também fui escrita travada. Fui forma decorada,
prevista, rígida. Fui padrão social. Fui estereótipos com os quais nunca
me identifiquei, e isso mata a essência. Mata a alma. Me senti
desrespeitado e minha resposta a isso foi me desrespeitar. Então,
percebo que sou isso – e com isso não sei o que o mundo irá fazer, mas
até agora tenho sobrevivido e vivido em alguns momentos. Escolhi morar
nesse apartamento pelos momentos de calma que ele me traz. Pela vista da
cidade e da lua que tem a janela da sala. Pelo silêncio cheio de
pensamentos quando estou sozinho aqui. Lembro-me que o achei quase
sozinho, só com a ajuda de algumas indicações de amigos. Percebo o homem
que venho me tornando. Percebo que, mesmo tendo sido desacreditado em
quase toda a vida, consegui. Um monte de coisa. Moro na cidade que quis
morar, faço o curso que quis fazer, escrevi o livro que quis escrever.
Amei como quis amar. Agora, o que me falta e o que procuro – é ser como
quero ser. Porque sou livro de Machado de Assis, sou citação de
Descartes em francês. Sou bom dia e gesto carinhoso, e abraço e risada
alta. Sou doce, sou gentil, e nisso não há problema. Quem não gosta que
se vá: há quem fique. Quem me menospreza, que fique um pouco mais e veja
que assim as coisas funcionam. E a quem não entende, que eu odeie o
pecado, não o pecador. Agora olho esse horizonte. Amo horizontes, como
quem me segue em redes sociais pode perceber. Amo essa sensação de
infinitude. Essa sensação quando esquecemos que vamos morrer, quando
esquecemos que o mundo acaba, quando esquecemos as bordas e limites.
Quando, por alguns instantes, nada pode nos incomodar – e a realidade se
submete à poesia. Não há barulho de trem, pista de carros ou festa em
rua que estrague um horizonte. É só olhar, e tudo se apaga. Todos os
sons se atenuam. Todas as preocupações se amenizam. É no horizonte que
nasce a vontade do desbravador, essa ideia de Cabral, de ser aquilo que
sempre se quis. De buscar aquilo que sempre sonhou. Sem medo. Sem pesar.